Memórias de Jorge Pena, de Sérgio de Sousa

<i>Inquirição, lucidez e rigor</i>

Domingos Lobo

A literatura deve ser apenas a incursão dos imaginários sobre o plano efabulatório das palavras, ou seja, deve limitar-se à estrutura estética, aos modos de contar uma estória, ou pode, se o autor entender, explanar outras derivantes do relato ficcional: políticas, sociológicas, filosóficas? Sendo estas disciplinas recorrentes do ensaio, ou seja, de um patamar mais académico e erudito da criação, do pensamento e dos saberes, poderão elas caber na orgânica estrutural do romance? Segundo os códigos prevalecentes entre alguns dos escribas e responsáveis editoriais, muito acantonados a uma certa direita, a função da literatura será a de distrair, de preencher os tempos de lazer e só, episódica e lateralmente a sua acção junto do leitor será formadora, didáctica e intelectualmente especulativa. A Literatura deverá conter sentidos mais amplos, estruturar-se em duas componentes essenciais: o do acervo memorial, o confronto com o seu tempo, a especulação referencial sobre o núcleo ideológico que a enforma; o modo do autor olhar o mundo tem na sua transposição outras componentes diegéticas para além da linear narração de uma estória, devendo suportar toda a intervenção criativa que leve ao aperfeiçoamento do nosso ser interior e da dignidade da nossa condição.

Barthes, em Mitologias, diz-nos que na ficção tudo cabe. Ou, explanando, o caudal da ficção é suficientemente vasto e ecléctico para que nele, com alguma parcimónia convenhamos, o autor possa introduzir, de forma explícita ou subliminar, as suas preocupações sociais, políticas, filosóficas, psicológicas, e sobre elas reflectir levando o leitor a tornar-se cúmplice e parte activa, sujeito dessa reflexão feita em campo aberto, que só a ficção permite.

Estas componentes diegéticas, a configuração de várias ciências do humano, estão amplamente contempladas em Memórias de Jorge Pena, de Sérgio de Sousa. Neste romance as ideias desenvolvem-se com o investimento semântico que esta prosódia, de modo eficaz, opera sem, contudo, a dominância ideológica lhe tolher a progressão e a clareza. O arguto olhar do autor percorre e repercute o real que a memória recolheu (este romance é um modo de textualizar a memória), descreve e interroga-se sem perplexidades redutoras, antes com sageza e lucidez, sobre o real percepcionado; essa recolha de signos que desde a infância incorporam o imaginário sensitivo do autor de Restara-lhes o Sexo. Não é um olhar nostálgico é, pelo contrário, forma de nos levar a reflectir sobre a nossa condição, sobre situações mal resolvidas no passado1, que Sérgio de Sousa transporta, de forma inusual, para este romance.

Mais do que as paixões, os ciúmes, as traições, afloradas de passagem, este módulo romanesco fala de um tempo português, de uma cidade, Lisboa, das gentes, mulheres e homens que a povoam e de um peculiar universo sensorial e perscrutador que inclui os filmes, as viagens, os livros, o 25 de Abril e os seus protagonistas, a tribo urbana que perpassa o território ficcional do autor, as suas inquietações políticas e sociais. Um livro que, no seu virtuosismo, se ajusta à descrição desses dias altos, que não escamoteia, antes afirma e toma partido. «Quem não é capaz de tomar partido deve calar-se», escreveu W. Benjamim. Sérgio de Sousa não cala, nem consente.

Deve a literatura ser, como defende Maria Alzira Seixo, «o estudo do tratamento estético da linguagem, e como tal conferir ao indivíduo o entendimento integral das várias formas de comunicação no quotidiano e fora dele», de entendimento pleno do real que nos cerca e condiciona, acrescento eu. Penso que sim. Este texto de Sérgio de Sousa, o décimo terceiro da sua lavra ficcional, vai nesse sentido: diz-nos, através da crónica das últimas décadas portuguesas e do seu colectivo desvario, nessa integral forma de abordagem do real sem facilitar a forma, antes, impregnando-a de rigorosas declinações linguísticas, de comedimento sintáctico e da análise das representações sociais, de como aqui chegámos, dos caminhos perdidos e do retrocesso civilizacional da actual conjuntura.

Assim, este Memórias de Jorge Pena, de Sérgio de Sousa, faz hoje todo o sentido sendo, a meu ver, a construção de uma totalidade discursiva que colhe e acolhe as várias disciplinas que abarcam o pensamento crítico hodierno: as ciências sociais e políticas, a arte e a sua importância na polis, a análise literária, uma recorrente e lúcida reflexão sobre o real, juntando a ficcionalidade criativa dessas componentes, sem escamotear uma bem conseguida descrição narrativa, a construção de ambientes, – primorosa de engenho, fugindo aos referentes estafados que por aí abundam de indigência formal e criativa –, a definição axiomática das personagens, numa contida e, a espaços, brilhante, segura contiguidade de todas essas componentes discursivas. Uma literatura – Sérgio de Sousa é um esteta do rigor – que contém, como Eduardo Lourenço, ao referir a «nova literatura» surgida nos anos 1950, assinalou: uma saúde literária, uma seiva, um gosto, um optimismo linguístico.2

Se a estrutura narrativa deste Memórias de Jorge Pena, na exigência estética que a enforma, nos seus tímidos referentes intimistas (já patentes, neste registo de emotivo comedimento, no livro O Real e o Fantástico) não será exaltante como a prosazinha que por aí se exibe, rasteira e subdesenvolvida, conduz-nos, ao invés, à principal função cultural e social da literatura: leva-nos a questionar o nosso tempo e a sociedade que habitamos, reconduz-nos (e como isso, hoje e aqui, nos é urgente) à prática de uma literatura inquisitiva e crítica, substantiva nas suas consonantes sintácticas; à exigência de pensar através da arte literária e, pensando, sermos convocados a agir sobre o real.

A literatura, como Sérgio de Sousa afirma neste texto, molda-nos o carácter, transforma-nos, humaniza-nos. Sem a literatura, sem as humanidades, geramos – como a prática destes dias invectiva de estupor e perplexidade –, responsáveis políticos, e não só – a elite que comanda as negociatas, gestores e empresários (?), foram concebidos em igual fornada –, acéfalos, «ínvios, obtusos, ignorantes», cultural e civicamente reaccionários. Voltando a Maria Alzira Seixo: políticos que nos «sugam as liberdades em trajectórias quotidianas absurdas».

Eis um livro que vai para além dos modelos gastos e estereotipados que nos querem impor e de que é pródigo este nosso sonso, desesperado tempo. Um livro que agita, que dialecticamente nos confronta, e conforta, nos leva a agir, a estar atento aos códigos do real sobre os quais reflecte.

Não conheço melhor forma de um escritor intervir, de ser responsável perante a polis, como instigador de consciências, sobre as derivas deste nosso injusto tempo.

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1 Memórias de Jorge Pena, de Sérgio de Sousa, p.13 – página a Página, Lisboa 2015

2 Eduardo Lourenço, «Uma Literatura Desenvolta ou Os Filhos de Álvaro de Campos», in O Tempo e o Modo, nº.42, Lisboa, 1966, p.925




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